Onde há fumaça, há fogo
Fato
- É, é a vida.
- Não, não é. É a gente, toda a gente. É você, sou eu, somos nós. É aquele cara ali adiante, é aquela senhora que vai passando. É aquele esquimó, aquele angolano, aquele holandês. É aquela flor de laranjeira perfumada e aquele lótus exuberante sem cheiro nenhum. É aquele pé de caju e aquela pedra alta e lisa que a gente queria ter subido, mas não conseguiu. É aquele relógio que parou exato na hora errada, aquele afago que a gente ganhou, aquela porrada que ficou faltando. É aquela manteiga derretida no pão quente de manhã. Aquele quadro que a gente só vê em gravura de livro porque não tem grana pra ir à Paris ver no museu. Aquele esconde-esconde, aquele beijo escondido, aquele beijo rasgado na frente de todo mundo. Aquela caneta e aquele papel. É aquele zero em aritmética e aquele filme imperdível perdido no cinema. Aquele velho que morreu e virou semente. Aquele sonho que morreu e virou adubo. É essa lua, essas estrelas. É essa paz desses galhos balançando, é esse vento. É o sol. Eu não sei o que é. Só sei que não é a vida. É o que a gente faz dela.
Uma de nós
A gravata
Intacta retina
“Existirmos: a que será que se destina?”
Havia isso e mais nada na pequena tira de papel. Todos ficaram aturdidos e, no íntimo, ofendidos: isso é lá bilhete de despedida que se deixe? Um verso de música e pronto, me matei. Mas era só isso mesmo. Por mais que revirassem a mesa, os papéis, os livros, não acharam nada que sequer indicasse as intenções dele em cortar os pulsos naquela tarde de sábado, deixando desamparados o cachorro, roupas de cama, computador, família e amigos.
Alguém lhe dissera uma vez que aquela música era a sua cara. Ele não entendera, mas amava a leveza e doçura dela, que não ocultavam uma profunda melancolia e sofrimento. E tudo numa canção tão curta. Tudo. “Existirmos: a que será que se destina?”. Disseram-lhe também que a música poderia se encerrar naquele verso. E foi justamente nesse verso que tudo se acabou pra ele. Tudo, que quem o conhecia sabia que era muita coisa.
No velório lembraram seus dons extraordinários. Amigo fiel, companheiro digno, para todas as horas. Homem corajoso e sensível aos problemas dos outros. Humilde, sincero e trabalhador – ninguém nunca o vira fazer corpo mole pra coisa alguma. “Esse aí vai chegar onde quiser”, diziam todos, enquanto cada um pensava o que raios ele poderia querer que não dizia, sem se dar conta de que na verdade tentavam querer por ele, querendo que ele quisesse o que queriam.
“Lembram de quando ele ganhou o concurso de oratória na escola? Matou muita gente de inveja, mas ninguém podia competir com ele”
“Era sempre o melhor aluno. Dizíamos que os professores já davam dez só de ver o nome dele na prova”
“Nem comemorou direito o primeiro lugar no vestibular já estava estudando pra faculdade. Menino dedicado!”
“Ajudava a gente demais. Fazia meses que não o víamos, quase um ano, acho, mas todo fim de mês era sagrado, o dinheiro tava lá na nossa conta. Nunca deixou de nos ajudar, menino de ouro...”
“Eu-eu o amava! Íamos nos casar! Ele me levou no restaurante mais caro da cidade e me deu esse anel aqui, ó! Não faz nem um ano, e parece que foi ontem. Foi o momento mais lindo da minha vida!”
- Mas não da dele.
Quem dizia era uma moça que ninguém reconheceu, mas a noiva identificou como uma vadia que ela surpreendera rondando seu noivo algumas vezes. Na certa haviam tido um caso bobo.
- Bem mais do que isso. Nenhum caso é tão intenso. Nós nos amávamos.
“Há duas semanas ele me convidou para assistir a um espetáculo sem par. Rodamos uma hora e meia em seu carro e depois que paramos, andamos mais meia hora no meio da mata. Quando chegamos a uma clareira, ele me mostrou uma revoada de borboletas, que estavam em época de reprodução. Uma mais linda que a outra. Ele ficou muito emocionado e disse “é a coisa mais linda que eu já vi”. Depois, lembro que baixou a cabeça e ficou muito tempo em silêncio, até sorrir amargo e sussurrar “acho que encontrei a resposta. Mas estou vivendo muito longe dela...”
- Resposta de quê? – inquiriu a noiva, indignada – Minha filha, tu tá pensando que é só abrir as pernas pro meu homem e chegar aqui...
- Eu nunca abri as pernas pra ele. Nunca o beijei. Nunca sequer segurei a mão dele por muito tempo. Fomos dois tolos o tempo todo.
Sem fazer caso de ninguém, a mulher atravessou a sala até o caixão. Para a surpresa de todos, levava consigo o bilhete de despedida do morto. Abaixou a cabeça e beijou os lábios dele, a primeira e última vez que daria um beijo em seu amado. Sentiu vontade de abrir os olhos dele, aqueles olhos que eram o que ele tinha de mais bonito, mas não queria vê-los embaçados pela morte. Queria lembrar-se deles serenos e iluminados, aqueles olhos puros, cuja imensa tristeza que ele carregava não conseguira macular. Ergueu a cabeça e saiu da sala. Apenas alguns puderam ver uma lágrima solitária que deslizava pelo rosto dela. Leve e melancólica. Doce e profundamente sofrida.
Um vinho, um gole, um porto
Aquela era uma noite de sábado, o que dava a cena um tom ainda maior de aberração. Como de costume as amigas ligaram, marcaram local e horário. Haveria um show aquela noite. Esperaram, mas Clarice não apareceu. Motivo? Febre, mentiu ela. A verdade? Cansaço. Enfadada de noites intermináveis, porres ilimitados, relacionamentos diaristas. Futilidade também tem prazo de validade, já dizia nossa mãe. Chega um tempo na vida que você começa a se importar com detalhes que antes eram só detalhes.
Quando se deu conta do que havia pensado saltou instantaneamente da cama. Meu Deus, eu to ficando velha! Era preciso beber algo. Foi até a geladeira. Não restara nenhuma cerveja do jantar com os amigos do trabalho da noite anterior, ela achou importante integrar a equipe que agora a tinha como líder, e a empolgação foi tanta que acabaram todos saindo de lá aos tropeços. Mas ali ao fundo da segunda prateleira haviam esquecido o vinho que um dos seus convidados levou. Ferreira Porto. Coincidência. Aquele gosto lhe trazia lembranças, que por pior que fossem ainda eram as melhores que tinha.
- Eu não te amo.
E essa era a melhor parte.
E o que foi desejo se materializou.
O mundo parou de girar. A cena paralisou-se pros meus olhos. O retrato da minha maior decepção. Os dois corpos nus unidos selvagemente bem a minha frente. Ele sobre ela. As pernas dela envoltas nos quadris dele. As mãos dele sentindo cada milímetro do corpo dela. Os lábios dela insaciados à procura dos lábios dele. Meu marido. Minha irmã. Meus maiores ódios. Eu nada fiz. Eles não perceberam minha presença, como sempre. A humilhação escorreu entre meus dedos em forma de suor. Ainda não consegui me perdoar por aquelas lágrimas. Repulsa estonteante. Meu orgulho pisado e escarrado na minha própria cara.
- Eu te amo.
E essa era a pior parte.
Vermelho
30
Depois de um mês o choro deixa de doer em desespero. Mostra-se uma calma constante. Uma dor contida escorre pelos olhos. As perguntas da última revolta ainda não foram respondidas e acredito que, em vida, nunca serão. Mas agora são indagadas por pensamentos completos e com nexo. A mente já não grita mais injúrias e lamentações. Trinta dias nos ensinam que nem todos os erros precisam de culpados. Pois é isso que a morte é, um erro de cálculo, um deslize da criação. E ninguém que me venha dizer que Deus foi desumano ao ponto de planejar esse fim sem sentido. Que é a punição pelos pecados que um embrião ainda não cometeu. E quem garante ao juízo final que eles serão cometidos? Culpados antes do crime, condenados e punidos antes do julgamento. Não se tem voz de defesa. O direito vira o dever de calar. Tudo por um fruto que eu nem pude provar. Qual o sabor do pecado?
A pior dor é que não se entende. E as explicações que me são dadas não me sustentam. Será essa a nossa semelhança, a desumanidade? Morrer é um acidente de percurso. Um imprevisto na eternidade que nos aguardava. Não faz parte dos planos da vida. Eu tento, mas não consigo ver a morte por uma perspectiva menos cruel. Não há céu que me seduza.
.
.
"A explicação divina para a morte é simples: reciclagem de matéria orgânica." (palavras do twiiter @OCriador)
Essa frase me fez rir, resolveu parcialmente essas minhas angústias e fez meu texto parecer no mínimo desnecessário hsuahsa. Bjão pessoas :)
O meu maior medo é a solidão
O meu maior medo é a solidão. Não a solidão do teto branco do meu quarto que eu procuro às vezes; tenho medo de ficar só. Tenho medo do nada. Sou só barulho por dentro, mesmo imerso em quietude por fora, festas, mil vozes que algazarram, não me deixam dormir em algumas noites. Me incomodam em algumas noites. Mas meu medo mais profundo é que elas se calem.
Não tenho medo do abandono, não tenho medo que me deixem. Tenho medo de eu mesmo arrancar tudo e jogar fora. Arrancar todos. Tenho medo de que eu continue sempre a ferir as pessoas que eu amo, como sempre fiz, e que essas feridas se tornem tão dolorosas e essa dor tão incurável, que eles se vejam obrigados a não dar a mão quando eu estender. Tenho medo de que a minha mão penda no vácuo para sempre a próxima vez que eu quiser apertar outra mão, que eu implorar socorro, que eu mendigar. Tenho medo de que me digam “Minha paciência tem limites!” quando eu sempre andei a testar todos os limites de todas as paciências – menos da minha.
Eu tenho medo porque sei que raras vezes eu aperto a mão dos meus amores com força pra mantê-los junto de mim. Tenho medo porque não sei se eles entendem que o meu abraço mal correspondido tem o peito aberto. Tenho medo porque minha boca está sempre tão afastada do meu coração e sente tanta dificuldade em traduzi-lo... tenho medo que meus amores queiram se segurar em mim pra não se afastarem e onde eu quiser que haja troncos fortes para eles, só existam galhos secos. Tenho medo de não saber arar a terra e preparar o jardim pra que eles plantem suas sementes. Tenho medo de morrer pra eles, morrer pra vida.
São tantas as coisas que matam. São tantos os cadáveres nessa vida e tantas as mortalhas que eu tenho medo de me deixar atrair pelo seu falso brilho que, meu Deus, por vezes é tão sedutor. Tenho medo de ternos, de metais e de falas emproadas. Tenho medo do poder, dum degrau alto demais numa escada feita de isopor. Tenho medo do espelho e dessas mil máscaras que se oferecem como putas para que eu as apanhe e as use até enjoar delas e só muito depois perceber que na verdade eu me consumi – quando já não houver mais rosto para máscara nenhuma esconder.
Por isso escrevo essa confissão, na sozinhez do meu quarto (porém nunca solidão), que tenha força de oração. A vocês, meus amores: que sua tolerância continue infinda embora a minha seja tão pouca; que os abraços, os beijos, os risos e os choros continuem os mais sinceros, apesar de eu por vezes dissimular os meus; que a vida continue a ser vida enquanto vida houver; que a sozinhez nunca seja solidão; que os barulhos nunca se calem. Amém.
.
.
.
.
.
.
Tô afastado, mas não morri! =] Até que enfim minhas férias (de uma semana e meia, mas são férias!) chegaram e cá estou eu assoprando a poeira do Casulo. O texto acima... digamos que não é totalmente autobiográfico. Uns 98% :)
Até agora, 2010 tem sido de muita felicidade! Mas vou deixar a própria Feto falar disso futuramente. Guria, parabéns! Tô muito feliz por ti!
E por vocês também, Alanna e Bittencourt!
Saudades que eu tava daqui.
Abraços!
Pra onde vai?
.
.
.
Agradecimentos especiais Fábio..." Da essência partida ao meio formaram-se dois, amigos" :D