O que no início era um armazém de esquina e sem importância se converteu no maior e mais requisitado mercado mundial. Quem um dia foi tachado de louco, trapaceiro e macumbeiro virou o mais famoso cientista que a terra já conheceu. O que era apenas uma crença de família, passada de pai pra filho há séculos, um costume caseiro e dogmático transformou o rumo da história. Onde antes se vendiam verduras, frutas e enlatados, hoje se encontrava prateleiras repletas de pacotinhos intitulados com os mais variados sentimentos. Exatamente. Carrinhos lotados de orgulho, de amor com uma pitadinha de ciúmes. Uma senhora, velha demais pra perder tempo procurando, decide comprar algumas paixões. Pega uns pacotinhos vermelho-sangue, de 100g cada e discretamente põe embaixo dos demais produtos na cesta. Agora é só presentear alguém do seu interesse e esperar.

Era dia de promoção e o lugar estava congestionado. “São 3000 kg de sorte, embrulhar para presente, por favor.” “Queremos 246g de amizade, em seis fatias”. “Moça, quanto ta custando a auto-estima?”

Os porões das casas estocavam o máximo de emoções possíveis. Caixas e mais caixas de sucesso eram encomendadas. O serviço de telemarketing atendia 24 horas por dia, 365 dias ao ano.
- Sentimentos Cia, bom dia.
- Alô, gostaria de fazer uma encomenda.
- Qual o seu pedido?
- São 5000 Kg de paz e 3000 litros de compaixão. Vocês fazem entrega para o exterior?
- Fazemos sim. Vou passá-la para a linha de exportação. La a senhora poderá solicitar sua encomenda e mandá-la para onde quiser.

Filas descomunais esperavam por produtos escassos.
- 765g de coragem, 600g de ódio e 350g de desumanidade, é hoje que pego aqueles dois desgraçados.
- Desculpe senhor, mas não vendemos esse tipo de mercadoria. Apenas sentimentos virtuosos são comercializados neste estabelecimento.

O homem descabelado deixou aparecer discretamente o bolo de notas azuis dentro de sua jaqueta e a vendedora, mais discretamente ainda, deu-lhe um cartão com um número de telefone. O homem pegou o cartão e se dirigiu para a saída, ligaria mais tarde para pegar a mercadoria em um local combinado. Um local seguro. O contrabando de sentimentos julgados tortuosos era censurado, sujeito a pena de morte. Mas nada que impedisse o comércio paralelo dos mesmos. Ainda tentou-se ocultar o método tradicional de capturar os sentimentos e transformá-los em matéria. Era tudo separado por tipo e intensidade. Pela cor, textura e estado. Mas esconder o processo não foi possível. O método foi logo descoberto, desmembrado, multiplicado, desenvolvido. Pessoas felizes demais começaram a desaparecer, voltando apáticas demais para se expressar. Demonstrar amor em público? Que absurdo! E antes que alguém percebesse o vetor da censura se desviara, sentimentos virtuosos viraram luxo e perigo.

“Tio, dá um trocado pra eu comprar tiquinho de felicidade aí.” “Vai procurar trabalhar moleque!” Respondeu o homem que tinha acabado de comprar um pacote de carinho, mas que tinha esquecido em cima do balcão. Esquecer era a única ação que ninguém esquecia de fazer.
.
.
.
Isso deveria ser um editorial, mas acabei me empolgando hehe.
Depois que terminei de escrever que percebi que no fundo a gente compra e vende nossos sentidos todo dia, traduz cada sentir nosso em matéria...Como se isso fosse possível.
Bjao =)

10 fios pro Casulo:

Alanna 12 de abril de 2009 às 13:38  

cara isso é tão intensamente profundo.

T.T
emocionante.

Ana Áurea 12 de abril de 2009 às 13:57  

é bem assim mesmo,sempre comprando e vendendo,o ser humano é muito louco,pra quê comercializar coisas que a gente tem em abundância em locais tão seguros?eu mesma perguntei e eu mesma vou responder:Porque a gente esconde tanto de nós mesmos que escondemos do resto do mundo tambem...assim não podemos trocar,só comprar e vender.bases do mundo capitalista mesmo né?

Fóssil 12 de abril de 2009 às 16:19  

Fiquei feliz de tu teres postado como post (sim, isso é redundante), merecia mais status que um editorial (hehe). Reflexões despretensiosas mas muito profundas, isso é lindo! Essas reflexões em particular são tão assustadora quanto cada vez mais plausíveis. É aterrador escutar "com dinheiro, tudo se compra", por exemplo. Gostei demais do comentário de Anau (e ao mesmo tempo achei muito divertido). E esse final, perfeito: ninguém esquece de esquecer...

Amei!

Jéssica Bittencourt 13 de abril de 2009 às 15:43  

Bilhante!
Nos faz repensar sobre a vida!
beijos

Angela 13 de abril de 2009 às 17:52  

Meu Deus, venerei!
Braaavo!

Um texto para se colar na contracapa do caderno.
De verdade.

Márcia, vulgo Feto 13 de abril de 2009 às 19:35  

"E se Deus quiser, ainda hei de pecar bastante."
Fóssil, amei tanto que furtei hehe.

Márcia, vulgo Feto 13 de abril de 2009 às 19:40  

pra quê comercializar coisas que a gente tem em abundância em locais tão seguros?
taí o que eu me pergunto com frequencia Aninha. A gente (humanos) tem cada uma...
Eu tenho medo Fóssil que algum dia o dinheiro realmente consiga comprar tudo. Pq ai a gente vai ser tudo, menos humano.

Bitten, Angela e Allana, obrigadão =)
Abraços!

Unknown 18 de abril de 2009 às 07:52  

Deixou meu dia mais feliz :] Me fez refletir enquanto lia, vou pegar meu pacotinho que carinho que esqueci dentro do carro. Muito bom!!

Ana Áurea 18 de abril de 2009 às 15:19  

amei o editorial by the way XD

Gabriella Barbosa 30 de dezembro de 2009 às 11:40  

Ontem msm pensava nisso, mto bom! Me fez chegar a alguma conclusão do meu pensamento até ontem estranho,hahahha