Lembrem-se das borboletas


"O amor de um cura o ódio de milhões"
(Gandhi)

Dos poucos luxos aos quais se dava na vida, um era aquele belo canteiro de flores. Mas não era um luxo que guardava pra si; tão logo as flores estavam no seu período mais bonito, ele as colhia, colocava-as num cesto e ia para o centro da cidade. E lá as distribuía para quem passasse. Sim, distribuía; muitos achavam que ele estava vendendo, outros tantos que ele estava ligado a alguma seita, mas a maioria pensava que ele era um maluco mesmo. E com razão.

A dona de casa passava com sua sacola de compras e o homem do escritório carregava uma pasta preta, mas ambos se incomodaram com a vadiagem do senhor. E mesmo ocupados como eram, resolveram ir até o homem e interpelá-lo:

- Escuta, moço, o senhor não tem mais o que fazer? - essa peróla de sutileza foi cuspida pela dona de casa.

O velho, doido, distribuidor de flores (e que também tinha algo de poeta, desconfio eu) também adorava conversar. Riu-se da pergunta da mulher e respondeu:

- Tenho, mas o que faço aqui é muito mais importante.

- Entregar flores às pessoas? De graça? - inquiriu a mulher, incrédula.

- Sim. Consegues pensar em algo mais importante?

O homem de negócios riu:

- Nesse momento me ocorrem pelo menos umas duzentas coisas de uma vez...

- Entendo... é uma pena... - disse o velho e parecia realmente apiedado.

E ele não parou de entregar as flores enquanto falava. Eram flores grandes, vistosas, bonitas. A dona de casa irritava-se cada vez mais:

- Mas por que diabos o senhor faz isso?

- Simples. Cada vez que entrego uma flor e alguém sorri, ganho uma batalha contra o ódio e a tristeza.

Os dois ficaram estupefatos. O homem continuou:

- Entendo o espanto. Também acho que o ódio e a tristeza devem existir no mundo. Mas penso que eles existem para podermos combatê-los e derrotá-los a cada dia.

Ele claramente interpretara erradamente os rostos dos dois. Mexendo incomodado na sua gravata, o homem de negócios falou:

- Não vês que estás empenhado em uma batalha vã?

- Sim! - concordou a dona de casa - De que adianta esse sorriso agora no rosto das pessoas se mais tarde essa flor vai murchar e eles voltarão a ser tristes - talvez antes disso, até. Talvez até joguem a flor fora, uma vez que estejam fora das suas vistas. De toda maneira, esse sorriso não ficará lá para sempre!

- Diga-me, minha filha, acaso não lembras das borboletas?

- Como?

- As borboletas... passam tanto tempo rastejando como lagartas e depois se fecham num casulo do qual lutam ferozmente para sair. Muitas morrem no caminho. Depois que viram borboletas, não duram mais que alguns dias. Porém eu não conheço muitas existências tão belas assim neste mundo.

A mulher arregalou os olhos, mas logo dissimulou a admiração. Fez cara de pouco caso e de caso perdido, agarrou a sacola e foi embora. O homem de negócios sorria. A afirmação daquele velho senil era bonita, mas e daí? Beleza e só, quem ligava pra isso?

- Achas mesmo que conseguirás vencer nessa revolução de flores, meu bom homem?

- Quem sabe, meu filho? Essas flores, eu só as distribuo.

- E acreditas que pode comover alguém? Que alguém continuará essa sua luta depois que o senhor se for? O que acontecerá quando o senhor partir deste mundo?

- Quando eu morrer, meu filho, meu corpo há de ser adubo para que nasçam ainda mais flores por aqui.

O homem sorriu. Disse ao velho que precisava ir e este entregou-lhe uma flor. Enquanto se afastava, o homem de negócios prendeu a grande, vistosa e bonita flor na sua pasta. O velho sorriu ao observá-lo de longe. Conseguira mais um soldado.

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A todos que acreditam na utopia e no poder das flores sobre as armas e a todos aqueles que me ensinaram e continuam ensinando a acreditar nisso também. Muito obrigado a todos por existirem.


Foto: Pietro Cenini, extraída do calendário da ECOOS.

6 fios pro Casulo:

Márcia, vulgo Feto 7 de junho de 2009 às 10:09  

Sabe aqueles momentos que fazem brotar um sorriso discreto e leve?
Esse. Admiravelmente belo fóssil!!!


obs: sem falar que a foto foi uma escolha perfeita.

Levi Agreste 8 de junho de 2009 às 06:30  

Parece perfeitamente lógico...
Muito bom!

Jéssica Bittencourt 9 de junho de 2009 às 17:04  

muito bom cara!
parabéns!
:)

Alanna 10 de junho de 2009 às 17:28  

bonito.
^^

Thais 16 de junho de 2009 às 09:35  

que linda metáfora! adorei, muito bonito!

Gabriella Barbosa 4 de janeiro de 2010 às 15:15  

A foto foi perfeita p o texto e o texto perfeito p o momento. Eu q agradeço!