A voz que se vê



Dedicado ao dia 11, ao som de Yamandu e Elza

"Só penso que talvez eu possa estar apaixonada, pode ser por você, e eu mesma desenhei aí esse x. Parece tudo que pode estar parecendo na sua cabeça agora, mas o que é pra mim é que eu tô querendo te abraçar e ficar perto como se você quisesse muito a mesma coisa. Sempre treino para tentar abraçar desse jeito, mas acho que sempre faço meio capenga, porque eu tenho medo que saia exatamente como eu planejei e de repente não funcione. Eu não sei exatamente o que você pode me oferecer, mas eu tenho querido tanto. Me entendes?"

Eu não sei, pode ser que ela seja só uma borboleta e eu, mato do campo que acha que tem algo de flor, algo que merece que ela pouse e se demore, e polinize, e deixe algo dela. Mas não sei, ela dá vontade de também querer voar, de desgarrar da raiz, de ser passarinho com ela – já viste que bonito é o seu cantar? Pois é, não sei, mas só de vê-la voando ou ouvir sua voz mesmo quando escrita, eu penso em porcelanas, mas também penso num apartamento de três cômodos sendo um banheiro, algo que nos caiba mas não seja caro demais e não implique uma vida inteira de trabalho antes de me ter ao lado dela. Dá vontade de dividir uma panela de brigadeiro e de correr cinco horas e meia numa esteira até eu parecer alguém que queira ser polinizado. Porque, vai que ela não ache, né? É que se até agora ninguém pousou, por que ela pousa? Por que ela pousa e se demora, e canta, e deixa pólen, e me faz pensar em ninho, porcelana, apartamento, orçamento pra dividir no fim de mês e indecisões pra escolher os padrinhos das três crianças – ou duas, ou uma, ou o nome do cachorro ou quais flores plantar na horta (não chama horta, chama canteiro – é de flores!). Penso que eu deveria ter uma música especial que sempre me lembra dela, mas é a voz dela que ouço em cada canção. Penso no nosso filme, ou na comida preferida, ou na viagem que eu queria fazer – e só penso que não há filme, comida ou viagem que eu não queira com ela dividir. Eu não sei, pode ser que eu seja só mato no campo, pode ser que ela seja uma brisa que me faz bem, muito bem, que sacode todo o eu mas ao mesmo tempo deixa o eu no lugar. Eu não sei, ela bem pode ser uma passarinha inquieta e brincalhona, que veio me dizer que tem sol bom pra aliviar depois da chuva, mas que a chuva não demora vir pra encher o campo de flores.
Eu não sei, passarinha, mas sei que tu vieste e me dá uma vontade danada de voar também... me levas?

Sobre a lua em marte


- E era muito feio lá, vovô?
- Muito.
- É... eu faço idéia.
- Não, não faz. Você nem pode começar a imaginar, minha filha.
A menina não o contestou. Pousou o giz de cera com que terminava de pintar o último anel de Saturno. Trabalho escolar sobre o Sistema Solar e ela se esmerava no cartaz. O avô não parava de dizer que era uma obra de arte, pelo menos desde o momento em que se sentara numa cadeira ao lado dela. Tão pouco conversava com o velho, na inversa medida da imensa curiosidade que ele despertava nela, como um baú antigo que não lhe fosse permitido abrir.
- Qual a chave, vovô?
- Que chave, meu anjo?
- Pro fundo dos seus olhos.
O velho sorriu:
- Está poeta, filha? Cuidado, seu pai pode não gostar de saber.
- Que poeta, vô! – disse a menina, corando – É que os seus olhos são muito fundos. Parecem cavernas bem fundas, mas não vejo luz por onde quer que ande nelas. Tem uma porta que não deixa passar a luz bem no fundo da caverna, não tem?
Dessa vez, o velho não sorriu.
- É um caso grave de poesia. Uma menina de catorze anos já com tanta metáfora embaixo da língua precisa ser examinada com urgência.
Ruborizando ainda mais, a menina retorquiu, como se fosse uma resposta:
- Já tenho quase quinze, vô! – e murmurando: - Entendo porque o papai não gosta que eu fale com você.
- Entende?
A menina levantou os olhos pra ele:
- Sim, entendo. Porque o senhor já está completamente caduco!
- Para o seu pai, eu já nasci caduco, meu anjo. E foi por causa dessa caduquice que ele ficou órfão.
Ela mordeu o lábio alguns segundos, antes de perguntar:
- A vovó morreu lá no lugar feio, né?
- Foi.
- Ela era bonita, vovô?
- Linda. Por isso ela nunca teve chance. Nunca teria. Eu acreditei, me deixei ludibriar. Quando se está no inferno, qualquer brisa parece o vento da salvação.
A menina se quedou em um silêncio quase reverente. Estaria conseguindo abrir aquela tampa tão pesada?
- Sua avó não foi a única que morreu lá, sabe?
- Eu sei, vô. Muitos morreram, ou foram brutalmente torturados ou exilados.
- Não falo deles.
- De quem, então?
- Da luz nos meus olhos.
- Hã?
- Eu também morri lá, minha filha.

A menina engoliu em seco e tentou desanuviar:
- Agora quem está soltando as metáforas que estavam presas?
- Não é uma metáfora meu anjo. Eu também morri lá. Morri um pouco quando desfizeram nossas barricadas. Quando rasgaram nossas bandeiras. Quando derrubaram nossos muros. E tiraram o som de nossas canções. E queimaram nossos papéis. Minha alma estilhaçada viu seus cacos se perderem. Eu e sua avó deixamos seu pai na casa da mãe dela quando deixamos de ter um lar. Fugimos. Foi bem como disse o uruguaio, comíamos medo no café-da-manhã, comíamos medo no almoço e jantávamos medo. Havia medo até nas unhas que roíamos e na saliva que trocávamos, apressados, arfantes, com a necessidade de procurar amor onde não tinha. Mas mesmo com todo o pavor, eu sentia que os cacos restantes da minha alma voltavam a se juntar e assim permaneceriam, porque a sua avó estava comigo. Foi quando minha alma se estilhaçou mais uma vez pra nunca mais ser colada novamente.
- Quando pegaram vocês?
- Sim, nos pegaram... mesmo vivendo em buracos, como ratos, nos pegaram, como aos ratos. Sempre separavam as pessoas, mas não eu e sua avó. Cada vez que eles me torturaram, odiei cada célula nervosa do meu corpo por querer fazer minha língua falar. Quando eles abriram meus olhos e puseram sal neles. Quando eletrocutaram meu corpo, quando penduraram pesos no meu pênis. Mas eu não falei. Me puseram na cadeira de dragão, eu não falei. Me puseram no pau-de-arara, eu não falei. Atiraram nas minhas pernas, eu não falei.

- Mas você acabou falando.
- Sim...
- O que lhe fez falar?
O velho engoliu em seco. Ela percebeu que ele sofria, mas queria ouvir o resto.
- Eles perceberam que já não havia alma no meu corpo pra torturar, mas eu ainda vivia.
- Mas como?
- Havia uma parte da minha alma que não vivia em mim.
A menina empalideceu, adivinhando o que vinha a seguir.
- Trouxeram sua avó e me amarraram numa cadeira. Torturaram-na na minha frente. Eles a espancaram e a estupraram, todos, em fila e seguraram minha cabeça e abriram meus olhos pra que eu não pudesse desviá-los ou fechá-los. Eu achava que não podia sentir mais dor, mas a dor me fez enlouquecer nesse dia. Berrando, eu disse tudo que eles queriam ouvir. Delatei todos que eu pude. Implorei a misericórdia deles. E eles pararam.
- Pararam?
- Pararam. Trouxeram sua avó até onde eu estava. Ergueram a cabeça dela pra que nos olhássemos. E atiraram em sua nuca.
A menina gritou. Baixou a cabeça, pondo-a entre as mãos, arfante. Havia mais coisas no baú do que ela agüentava ver. Se sentia nauseada, tonta. Como aquele velho ainda estava ali? Como suportara tudo isso?
Aí lembrou: não suportara.
- Agora entendo. Entendo porque o senhor disse que morreu lá, vovô.
- Não foi isso que me fez morrer. Eu já havia morrido antes mesmo do tiro.
- Como? E o que lhe fez morrer?
- O que sua avó me disse na última vez que nossos olhos se encontraram.
- E o que foi?
O velho engoliu em seco mais uma vez, mas não pôde conter as lágrimas.
“Você me traiu quando traiu a todos. Não espere o meu perdão, nunca mais.”
Silêncio.
- Ela disse isso, vovô? – perguntou a menina, depois de longos minutos.
- Disse. Ela era linda, eu não lhe falei? Mulher, como eu nunca fui sequer homem. Eu deveria saber, eles nunca a deixariam viver. E eu, morrendo para ela, terminei de morrer para mim e morri para o mundo.
- Meu Deus, vovô... – disse a menina, ainda sem ar – eu estou... não sei...
- Eu sei.
- Desculpa, vovô, mas eu acho que agora sim sei porque o papai não gosta que eu fale com o senhor.
- Por quê?
- Porque eu estou chocada, deprimida, não sei...
- Não. Não é por isso.
- E como o senhor sabe? Por que seria, então?
O velho sorriu.
- Ele tem medo que você puxe à sua avó, porque és idêntica a ela.
A menina arregalou os olhos.
- Mas vovô... depois de saber de tudo que vocês passaram, como o senhor quer que eu carregue esse legado? Como o senhor espera que eu vá num caminho pelo menos parecido com o que vocês trilharam?
Ele olhou para o trabalho dela
- Olhe sua obra de arte, minha linda. Hoje você pega o compasso e desenha o mundo com a maior facilidade. Em nossa época, demos nossa vida para desenhar o mundo que existe hoje, para você. Nós sonhamos este mundo, meu anjo, mas este não é o mundo que sonhamos.
A menina não conseguiu dizer mais nada. Simplesmente pegou o giz de cera e começou a pintar o planeta Marte.

Às armas!


Usava pesticida, sapatos de ferro e toda sorte de venenos diariamente em cada buraco e montinho de terra que via pela casa.
- Mas para que tanto empenho? São só formigas!
- Só formigas, é? Sabe quão destruidoras podem ser suas presas?
- Sei, sim.
- Sabes quanta força cada uma delas tem, que pode carregar várias vezes o seu peso?
- Sei, sim. Mas e daí, se elas estão tão separadas?
- Não vês o perigo que corremos se elas perceberem isso?

Onde há fumaça, há fogo


Odeio cigarro. Quando senti o cheiro levantei logo os olhos da página com ar de reprovação. O que mais me irritou foi ele ter me desconcentrado no melhor capítulo do livro. Era a quarta vez que eu o lia, e sempre esperava Aquela página desde a primeira linha. Só pra sentir o frio na barriga, o arrepio na nuca, a umidade nos olhos! Aquele autor mereceu ter nascido apenas por ter escrito esse parágrafo. "As pessoas podem fechar os olhos diante da grandeza, do assustador... Mas não podiam escapar do aroma." Aquela fumaça me provou que é verdade. Me retirou da França no séc. XVIII e levou minha atenção até ele.
Apoiava um dos braços no corrimão da escada, mesmo braço cuja mão segurava o maldito tabaco. Levava o cigarro até a boca, tragava-o e sem pressa alguma deixava a fumaça fugir com o vento. Sem nenhuma obrigação de existir. Na mão direita um anel, mas não parecia uma aliança. Cabelos um pouco grisalhos. Bermuda quadriculada e camisa azul. Corpo de 30. Rugas de 40. Postura de quem não se preocupa muito com idade. Se ele fosse um personagem meu, o chamaria de Jorge. Combina com o seu queixo afinalado. E eu nem gosto muito desse nome mas o usaria. Afinal, eu também não gosto nem um pouco de cigarros mas gostei do homem que o tragava. Gostei instantaneamente da forma como ele se movia. Da forma como respirava. O olhos quase cerrados por conta do sol. Olhava para baixo sem o menor interesse, não procurava ninguém e nem reparava em quem passava. Os lábios, não posso negar que também gostei deles. Fiquei a imaginar qual voz eles emitiriam. Não parecia alguém que falasse alto, mas que ria mais mostrando os dentes do que gerando sons. Dentes que imagino bem delineados. Nossa imaginação é traidora, adora idealizar. Não pude ver os olhos direito, mas pela expressão facial deu para perceber que provavelmente estava a pensar em nada. Admiro pessoas que o fazem assim, por nada. Elas não tem aquela ruga entre as sobrancelhas que expulsa o bem-estar. Não era sério, mesmo sem sorrir. Cheguei até a pensar em me aproximar.

- Boa tarde.
- Boa.
- Podes me emprestar um cigarro?
- Claro, aqui está, precisa de fogo?
- Sim, sim, obrigada.
- Estavas sentada aí faz tempo com vergonha de pedir, não é?...

Claro, não passou de imaginação. Nunca levantei e nem me atrevi a fingir que meu interesse era o cigarro. Como é perceptível, eu não fumo. O que pareceu atração foi na verdade Simpatia.
Depois de três tragadas foi até o lixeiro e amassou o cigarro pra apagá-lo. Passou por mim sem reparar no que eu pensava e nunca mais o vi.
Um dia, Jorge terá uma história.

Fato


- É, é a vida.
- Não, não é. É a gente, toda a gente. É você, sou eu, somos nós. É aquele cara ali adiante, é aquela senhora que vai passando. É aquele esquimó, aquele angolano, aquele holandês. É aquela flor de laranjeira perfumada e aquele lótus exuberante sem cheiro nenhum. É aquele pé de caju e aquela pedra alta e lisa que a gente queria ter subido, mas não conseguiu. É aquele relógio que parou exato na hora errada, aquele afago que a gente ganhou, aquela porrada que ficou faltando. É aquela manteiga derretida no pão quente de manhã. Aquele quadro que a gente só vê em gravura de livro porque não tem grana pra ir à Paris ver no museu. Aquele esconde-esconde, aquele beijo escondido, aquele beijo rasgado na frente de todo mundo. Aquela caneta e aquele papel. É aquele zero em aritmética e aquele filme imperdível perdido no cinema. Aquele velho que morreu e virou semente. Aquele sonho que morreu e virou adubo. É essa lua, essas estrelas. É essa paz desses galhos balançando, é esse vento. É o sol. Eu não sei o que é. Só sei que não é a vida. É o que a gente faz dela.