Sobre a lua em marte


- E era muito feio lá, vovô?
- Muito.
- É... eu faço idéia.
- Não, não faz. Você nem pode começar a imaginar, minha filha.
A menina não o contestou. Pousou o giz de cera com que terminava de pintar o último anel de Saturno. Trabalho escolar sobre o Sistema Solar e ela se esmerava no cartaz. O avô não parava de dizer que era uma obra de arte, pelo menos desde o momento em que se sentara numa cadeira ao lado dela. Tão pouco conversava com o velho, na inversa medida da imensa curiosidade que ele despertava nela, como um baú antigo que não lhe fosse permitido abrir.
- Qual a chave, vovô?
- Que chave, meu anjo?
- Pro fundo dos seus olhos.
O velho sorriu:
- Está poeta, filha? Cuidado, seu pai pode não gostar de saber.
- Que poeta, vô! – disse a menina, corando – É que os seus olhos são muito fundos. Parecem cavernas bem fundas, mas não vejo luz por onde quer que ande nelas. Tem uma porta que não deixa passar a luz bem no fundo da caverna, não tem?
Dessa vez, o velho não sorriu.
- É um caso grave de poesia. Uma menina de catorze anos já com tanta metáfora embaixo da língua precisa ser examinada com urgência.
Ruborizando ainda mais, a menina retorquiu, como se fosse uma resposta:
- Já tenho quase quinze, vô! – e murmurando: - Entendo porque o papai não gosta que eu fale com você.
- Entende?
A menina levantou os olhos pra ele:
- Sim, entendo. Porque o senhor já está completamente caduco!
- Para o seu pai, eu já nasci caduco, meu anjo. E foi por causa dessa caduquice que ele ficou órfão.
Ela mordeu o lábio alguns segundos, antes de perguntar:
- A vovó morreu lá no lugar feio, né?
- Foi.
- Ela era bonita, vovô?
- Linda. Por isso ela nunca teve chance. Nunca teria. Eu acreditei, me deixei ludibriar. Quando se está no inferno, qualquer brisa parece o vento da salvação.
A menina se quedou em um silêncio quase reverente. Estaria conseguindo abrir aquela tampa tão pesada?
- Sua avó não foi a única que morreu lá, sabe?
- Eu sei, vô. Muitos morreram, ou foram brutalmente torturados ou exilados.
- Não falo deles.
- De quem, então?
- Da luz nos meus olhos.
- Hã?
- Eu também morri lá, minha filha.

A menina engoliu em seco e tentou desanuviar:
- Agora quem está soltando as metáforas que estavam presas?
- Não é uma metáfora meu anjo. Eu também morri lá. Morri um pouco quando desfizeram nossas barricadas. Quando rasgaram nossas bandeiras. Quando derrubaram nossos muros. E tiraram o som de nossas canções. E queimaram nossos papéis. Minha alma estilhaçada viu seus cacos se perderem. Eu e sua avó deixamos seu pai na casa da mãe dela quando deixamos de ter um lar. Fugimos. Foi bem como disse o uruguaio, comíamos medo no café-da-manhã, comíamos medo no almoço e jantávamos medo. Havia medo até nas unhas que roíamos e na saliva que trocávamos, apressados, arfantes, com a necessidade de procurar amor onde não tinha. Mas mesmo com todo o pavor, eu sentia que os cacos restantes da minha alma voltavam a se juntar e assim permaneceriam, porque a sua avó estava comigo. Foi quando minha alma se estilhaçou mais uma vez pra nunca mais ser colada novamente.
- Quando pegaram vocês?
- Sim, nos pegaram... mesmo vivendo em buracos, como ratos, nos pegaram, como aos ratos. Sempre separavam as pessoas, mas não eu e sua avó. Cada vez que eles me torturaram, odiei cada célula nervosa do meu corpo por querer fazer minha língua falar. Quando eles abriram meus olhos e puseram sal neles. Quando eletrocutaram meu corpo, quando penduraram pesos no meu pênis. Mas eu não falei. Me puseram na cadeira de dragão, eu não falei. Me puseram no pau-de-arara, eu não falei. Atiraram nas minhas pernas, eu não falei.

- Mas você acabou falando.
- Sim...
- O que lhe fez falar?
O velho engoliu em seco. Ela percebeu que ele sofria, mas queria ouvir o resto.
- Eles perceberam que já não havia alma no meu corpo pra torturar, mas eu ainda vivia.
- Mas como?
- Havia uma parte da minha alma que não vivia em mim.
A menina empalideceu, adivinhando o que vinha a seguir.
- Trouxeram sua avó e me amarraram numa cadeira. Torturaram-na na minha frente. Eles a espancaram e a estupraram, todos, em fila e seguraram minha cabeça e abriram meus olhos pra que eu não pudesse desviá-los ou fechá-los. Eu achava que não podia sentir mais dor, mas a dor me fez enlouquecer nesse dia. Berrando, eu disse tudo que eles queriam ouvir. Delatei todos que eu pude. Implorei a misericórdia deles. E eles pararam.
- Pararam?
- Pararam. Trouxeram sua avó até onde eu estava. Ergueram a cabeça dela pra que nos olhássemos. E atiraram em sua nuca.
A menina gritou. Baixou a cabeça, pondo-a entre as mãos, arfante. Havia mais coisas no baú do que ela agüentava ver. Se sentia nauseada, tonta. Como aquele velho ainda estava ali? Como suportara tudo isso?
Aí lembrou: não suportara.
- Agora entendo. Entendo porque o senhor disse que morreu lá, vovô.
- Não foi isso que me fez morrer. Eu já havia morrido antes mesmo do tiro.
- Como? E o que lhe fez morrer?
- O que sua avó me disse na última vez que nossos olhos se encontraram.
- E o que foi?
O velho engoliu em seco mais uma vez, mas não pôde conter as lágrimas.
“Você me traiu quando traiu a todos. Não espere o meu perdão, nunca mais.”
Silêncio.
- Ela disse isso, vovô? – perguntou a menina, depois de longos minutos.
- Disse. Ela era linda, eu não lhe falei? Mulher, como eu nunca fui sequer homem. Eu deveria saber, eles nunca a deixariam viver. E eu, morrendo para ela, terminei de morrer para mim e morri para o mundo.
- Meu Deus, vovô... – disse a menina, ainda sem ar – eu estou... não sei...
- Eu sei.
- Desculpa, vovô, mas eu acho que agora sim sei porque o papai não gosta que eu fale com o senhor.
- Por quê?
- Porque eu estou chocada, deprimida, não sei...
- Não. Não é por isso.
- E como o senhor sabe? Por que seria, então?
O velho sorriu.
- Ele tem medo que você puxe à sua avó, porque és idêntica a ela.
A menina arregalou os olhos.
- Mas vovô... depois de saber de tudo que vocês passaram, como o senhor quer que eu carregue esse legado? Como o senhor espera que eu vá num caminho pelo menos parecido com o que vocês trilharam?
Ele olhou para o trabalho dela
- Olhe sua obra de arte, minha linda. Hoje você pega o compasso e desenha o mundo com a maior facilidade. Em nossa época, demos nossa vida para desenhar o mundo que existe hoje, para você. Nós sonhamos este mundo, meu anjo, mas este não é o mundo que sonhamos.
A menina não conseguiu dizer mais nada. Simplesmente pegou o giz de cera e começou a pintar o planeta Marte.

1 fios pro Casulo:

Dy 1 de maio de 2011 às 16:25  

Comentar num texto desse é muito dificil. Qualquer coisas que dizer vai estar aquém do que ele é. Por isso apenas te agradeço. Obrigada.