Onde há fumaça, há fogo


Odeio cigarro. Quando senti o cheiro levantei logo os olhos da página com ar de reprovação. O que mais me irritou foi ele ter me desconcentrado no melhor capítulo do livro. Era a quarta vez que eu o lia, e sempre esperava Aquela página desde a primeira linha. Só pra sentir o frio na barriga, o arrepio na nuca, a umidade nos olhos! Aquele autor mereceu ter nascido apenas por ter escrito esse parágrafo. "As pessoas podem fechar os olhos diante da grandeza, do assustador... Mas não podiam escapar do aroma." Aquela fumaça me provou que é verdade. Me retirou da França no séc. XVIII e levou minha atenção até ele.
Apoiava um dos braços no corrimão da escada, mesmo braço cuja mão segurava o maldito tabaco. Levava o cigarro até a boca, tragava-o e sem pressa alguma deixava a fumaça fugir com o vento. Sem nenhuma obrigação de existir. Na mão direita um anel, mas não parecia uma aliança. Cabelos um pouco grisalhos. Bermuda quadriculada e camisa azul. Corpo de 30. Rugas de 40. Postura de quem não se preocupa muito com idade. Se ele fosse um personagem meu, o chamaria de Jorge. Combina com o seu queixo afinalado. E eu nem gosto muito desse nome mas o usaria. Afinal, eu também não gosto nem um pouco de cigarros mas gostei do homem que o tragava. Gostei instantaneamente da forma como ele se movia. Da forma como respirava. O olhos quase cerrados por conta do sol. Olhava para baixo sem o menor interesse, não procurava ninguém e nem reparava em quem passava. Os lábios, não posso negar que também gostei deles. Fiquei a imaginar qual voz eles emitiriam. Não parecia alguém que falasse alto, mas que ria mais mostrando os dentes do que gerando sons. Dentes que imagino bem delineados. Nossa imaginação é traidora, adora idealizar. Não pude ver os olhos direito, mas pela expressão facial deu para perceber que provavelmente estava a pensar em nada. Admiro pessoas que o fazem assim, por nada. Elas não tem aquela ruga entre as sobrancelhas que expulsa o bem-estar. Não era sério, mesmo sem sorrir. Cheguei até a pensar em me aproximar.

- Boa tarde.
- Boa.
- Podes me emprestar um cigarro?
- Claro, aqui está, precisa de fogo?
- Sim, sim, obrigada.
- Estavas sentada aí faz tempo com vergonha de pedir, não é?...

Claro, não passou de imaginação. Nunca levantei e nem me atrevi a fingir que meu interesse era o cigarro. Como é perceptível, eu não fumo. O que pareceu atração foi na verdade Simpatia.
Depois de três tragadas foi até o lixeiro e amassou o cigarro pra apagá-lo. Passou por mim sem reparar no que eu pensava e nunca mais o vi.
Um dia, Jorge terá uma história.

6 fios pro Casulo:

Alanna 30 de dezembro de 2010 às 06:11  

Será que ele saberia que era uma musa inspiradora?

Adoro perceber os detalhes ínfimos do cotidiano. *-*
tá lindo o texto.

Anônimo 1 de janeiro de 2011 às 08:21  

onde tu viu essa pessoa?
foi no monumental? pq eu lembro de uma hst tua parecida =)

eu amo reparar nos detalhes dos personagens. Muito bom vaca, parabéns.

bjo, Fernanda.

Márcia, vulgo Feto 6 de janeiro de 2011 às 19:56  

Fê, vc leu o rascunho desse texto no meu caderno quando eu tava estudando pro vestibular no tropical. Era só a descrição do cara. Ficou lá mofando até que um dia desses...eu fiz \o/

Num é, Allana? Quando a gente repara parece que tudo fica diferente, mesmo sendo o mesmo que vemos todos os dias. Detalhes ínfimos são muito divertidos. E as pessoas que passam, adoro as pessoas que passam!

Fóssil 8 de janeiro de 2011 às 14:05  

Também adoro as pessoas que passam e suas histórias incríveis que eles podem contar. Fico imaginando como se sentiriam se soubessem que têm sua privacidade invadida dessa maneira, que nos contam tudo sem saber x)

"nos"... mas nem pra todos - privilégio de quem tem uma sensibilidade aguçada, como a tua, Feto. Muito bom!

[achava que já tinha comentado ><]

Ana Áurea 17 de janeiro de 2011 às 22:26  

eu adoro quando passo aqui para visitar os velhos amigos e me deparo com essas obras de artes de vocês!

adoro inventar histórias para personagens aleatórios da vida real, já falei isso aqui.vai ver vocês dois tambem já estiveram nas minhas histórinhas se duvidarem HAHAHAA

Caio Carvalho 21 de janeiro de 2011 às 12:30  

Porra, eu sou fã de contos com aquela frase final certa.Aquela que não devia ser de outro jeito.Na verdade sou fã dessas frases finais em qualquer estória, tanto no cinema quanto na literatura, ou na dramaturgia.Vivênciei ótimos momentos "pós-frases" como este.É uma coisa que não dá pra explicar e muitos podem até achar ridículo prestar mais atenção na frase final do que no conto todo.Mas eu prestei atenção ao conto todo. Mas aquela frase fez ele se tornar maior do que já era.