Fato


- É, é a vida.
- Não, não é. É a gente, toda a gente. É você, sou eu, somos nós. É aquele cara ali adiante, é aquela senhora que vai passando. É aquele esquimó, aquele angolano, aquele holandês. É aquela flor de laranjeira perfumada e aquele lótus exuberante sem cheiro nenhum. É aquele pé de caju e aquela pedra alta e lisa que a gente queria ter subido, mas não conseguiu. É aquele relógio que parou exato na hora errada, aquele afago que a gente ganhou, aquela porrada que ficou faltando. É aquela manteiga derretida no pão quente de manhã. Aquele quadro que a gente só vê em gravura de livro porque não tem grana pra ir à Paris ver no museu. Aquele esconde-esconde, aquele beijo escondido, aquele beijo rasgado na frente de todo mundo. Aquela caneta e aquele papel. É aquele zero em aritmética e aquele filme imperdível perdido no cinema. Aquele velho que morreu e virou semente. Aquele sonho que morreu e virou adubo. É essa lua, essas estrelas. É essa paz desses galhos balançando, é esse vento. É o sol. Eu não sei o que é. Só sei que não é a vida. É o que a gente faz dela.

Uma de nós




Ela me empurrou pro lado com aquela delicadeza carente e deitou. Se aconchegou nos meus braços finos como se eles tivessem alguma força de proteção. Queria me desculpar pelo meu eterno silêncio, por não ser capaz de lhe dar consolo. Mas é que aquelas dores se confundiam com as minhas, seria como me auto-consolar, não consigo tanto. Eu esperei que ela desabafasse, mas calou. Nem chorou. Nem nada. Talvez fosse justamente do nada que ela estivesse precisando. E era o nada que eu tinha para lhe dar. Todo o nada que muitos não tem. Uns minutos em uma rede na varanda. Uma luz apagada. A lua acesa. O vento de setembro. Com ela, minhas lágrimas secam, fico muda. Não sei explicar. Uma vez por outra é preciso se deixar ser mortal. Descansar da responsabilidade de cuidar do mundo. Ficar degustando aquela felicidade tão triste. Por um momento, eu não saberia distinguir quem era mãe e quem era a filha ali.