Intacta retina




“Existirmos: a que será que se destina?”

Havia isso e mais nada na pequena tira de papel. Todos ficaram aturdidos e, no íntimo, ofendidos: isso é lá bilhete de despedida que se deixe? Um verso de música e pronto, me matei. Mas era só isso mesmo. Por mais que revirassem a mesa, os papéis, os livros, não acharam nada que sequer indicasse as intenções dele em cortar os pulsos naquela tarde de sábado, deixando desamparados o cachorro, roupas de cama, computador, família e amigos.
Alguém lhe dissera uma vez que aquela música era a sua cara. Ele não entendera, mas amava a leveza e doçura dela, que não ocultavam uma profunda melancolia e sofrimento. E tudo numa canção tão curta. Tudo. “Existirmos: a que será que se destina?”. Disseram-lhe também que a música poderia se encerrar naquele verso. E foi justamente nesse verso que tudo se acabou pra ele. Tudo, que quem o conhecia sabia que era muita coisa.
No velório lembraram seus dons extraordinários. Amigo fiel, companheiro digno, para todas as horas. Homem corajoso e sensível aos problemas dos outros. Humilde, sincero e trabalhador – ninguém nunca o vira fazer corpo mole pra coisa alguma. “Esse aí vai chegar onde quiser”, diziam todos, enquanto cada um pensava o que raios ele poderia querer que não dizia, sem se dar conta de que na verdade tentavam querer por ele, querendo que ele quisesse o que queriam.
“Lembram de quando ele ganhou o concurso de oratória na escola? Matou muita gente de inveja, mas ninguém podia competir com ele”
“Era sempre o melhor aluno. Dizíamos que os professores já davam dez só de ver o nome dele na prova”
“Nem comemorou direito o primeiro lugar no vestibular já estava estudando pra faculdade. Menino dedicado!”
“Ajudava a gente demais. Fazia meses que não o víamos, quase um ano, acho, mas todo fim de mês era sagrado, o dinheiro tava lá na nossa conta. Nunca deixou de nos ajudar, menino de ouro...”
“Eu-eu o amava! Íamos nos casar! Ele me levou no restaurante mais caro da cidade e me deu esse anel aqui, ó! Não faz nem um ano, e parece que foi ontem. Foi o momento mais lindo da minha vida!”
- Mas não da dele.
Quem dizia era uma moça que ninguém reconheceu, mas a noiva identificou como uma vadia que ela surpreendera rondando seu noivo algumas vezes. Na certa haviam tido um caso bobo.
- Bem mais do que isso. Nenhum caso é tão intenso. Nós nos amávamos.
“Há duas semanas ele me convidou para assistir a um espetáculo sem par. Rodamos uma hora e meia em seu carro e depois que paramos, andamos mais meia hora no meio da mata. Quando chegamos a uma clareira, ele me mostrou uma revoada de borboletas, que estavam em época de reprodução. Uma mais linda que a outra. Ele ficou muito emocionado e disse “é a coisa mais linda que eu já vi”. Depois, lembro que baixou a cabeça e ficou muito tempo em silêncio, até sorrir amargo e sussurrar “acho que encontrei a resposta. Mas estou vivendo muito longe dela...”
- Resposta de quê? – inquiriu a noiva, indignada – Minha filha, tu tá pensando que é só abrir as pernas pro meu homem e chegar aqui...
- Eu nunca abri as pernas pra ele. Nunca o beijei. Nunca sequer segurei a mão dele por muito tempo. Fomos dois tolos o tempo todo.
Sem fazer caso de ninguém, a mulher atravessou a sala até o caixão. Para a surpresa de todos, levava consigo o bilhete de despedida do morto. Abaixou a cabeça e beijou os lábios dele, a primeira e última vez que daria um beijo em seu amado. Sentiu vontade de abrir os olhos dele, aqueles olhos que eram o que ele tinha de mais bonito, mas não queria vê-los embaçados pela morte. Queria lembrar-se deles serenos e iluminados, aqueles olhos puros, cuja imensa tristeza que ele carregava não conseguira macular. Ergueu a cabeça e saiu da sala. Apenas alguns puderam ver uma lágrima solitária que deslizava pelo rosto dela. Leve e melancólica. Doce e profundamente sofrida.