Um vinho, um gole, um porto


O relógio já marcava 4:30 da manhã e Clarice ainda se remexia na cama à procura de alguma posição confortável. A cama de casal, ocupada por uma pessoa só, era apenas um dos lembretes do isolamento. Solidão? Imagine. Clarice sempre foi muito mais auto-suficiente que eu. Eram sempre pra ela os telefonemas, convites, recados. Amigos nunca lhe faltaram. Impossível não se encantar com o sorriso brilhante que herdara do nosso pai. Tão irradiante que chegava a me contagiar, infectar e comandar tudo o que queria.


Aquela era uma noite de sábado, o que dava a cena um tom ainda maior de aberração. Como de costume as amigas ligaram, marcaram local e horário. Haveria um show aquela noite. Esperaram, mas Clarice não apareceu. Motivo? Febre, mentiu ela. A verdade? Cansaço. Enfadada de noites intermináveis, porres ilimitados, relacionamentos diaristas. Futilidade também tem prazo de validade, já dizia nossa mãe. Chega um tempo na vida que você começa a se importar com detalhes que antes eram só detalhes.


Quando se deu conta do que havia pensado saltou instantaneamente da cama. Meu Deus, eu to ficando velha! Era preciso beber algo. Foi até a geladeira. Não restara nenhuma cerveja do jantar com os amigos do trabalho da noite anterior, ela achou importante integrar a equipe que agora a tinha como líder, e a empolgação foi tanta que acabaram todos saindo de lá aos tropeços. Mas ali ao fundo da segunda prateleira haviam esquecido o vinho que um dos seus convidados levou. Ferreira Porto. Coincidência. Aquele gosto lhe trazia lembranças, que por pior que fossem ainda eram as melhores que tinha.

Um homem. Um erro. O melhor erro. A negação de toda dignidade que passou a vida fingindo que possuía. O marido da própria irmã. Nada mais sádico e excitante. Ansiava pelo momento que ela surgisse no entrar da porta, pálida e imobilizada. E ela nada faria, ficaria ali assistindo o prazer dos dois corpos entrelaçados explodir em êxtase. Eles não perceberiam sua presença, como sempre. Aproveitariam o corpo um do outro com toda a intimidade e sem nenhum respeito. Violariam todo pudor. Como se suas mãos já conhecessem cada milímetro de suas superfícies. As peles se reconheceriam a cada toque. Eram anatomicamente perfeitos um para o outro. Como animais que se completam.


- Eu não te amo.
E essa era a melhor parte.


E o que foi desejo se materializou.

O mundo parou de girar. A cena paralisou-se pros meus olhos. O retrato da minha maior decepção. Os dois corpos nus unidos selvagemente bem a minha frente. Ele sobre ela. As pernas dela envoltas nos quadris dele. As mãos dele sentindo cada milímetro do corpo dela. Os lábios dela insaciados à procura dos lábios dele. Meu marido. Minha irmã. Meus maiores ódios. Eu nada fiz. Eles não perceberam minha presença, como sempre. A humilhação escorreu entre meus dedos em forma de suor. Ainda não consegui me perdoar por aquelas lágrimas. Repulsa estonteante. Meu orgulho pisado e escarrado na minha própria cara.


- Eu te amo.
E essa era a pior parte.
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Postar no Casulo me traz uma paz... Por mais que eu demore, eu sempre fico com saudade daqui =)