Pra onde vai?




"Pra onde vai você? Pra onde vai? Pra onde vai o sol quando a noite cai?"
Como é possível sentir a sensação da morte quando ainda se está vivo? Uma coisa é certa, não é possível voltar. Eu tinha dezoito anos quando morri. Era um final de semana prolongado, não lembro a data, ja faz tempo que perdi a noção do tempo. Nem me lembro mais quanto duram 24 horas. Aqui o sol não se põe. Eu e meu pai paramos em um supermercado próximo de casa pra comprar cerveja para os convidados do churrasco. Nenhum motivo especial para comemoração, apenas reunião de uns amigos. Eu, claro, me aproveitei da situação pra comprar chocolate, eu não resistia. Sinto saudade do cheiro, de saborear lentamente cada pedaço amargo. Pagamos tudo no cartão de crédito e fomos pro carro. Colocávamos as compras na mala quando ele se aproximou com a arma. Eu nunca tinha sido assaltada antes. Os olhos dele esbugalhados e vermelhos, da testa escorria o suor nervoso. E as mãos, como tremiam! Era o que eu pensava quando senti escorrer pela barriga algo quente. Sangue. Não sei como aconteceu, não senti dor alguma, só fraqueza. Não consegui mais me manter em pé. Alguém me segurou pelas costas e me deitou no asfalto quente. As pessoas estavam longe, as vozes misturadas, não conseguia reconhecer meu pai na pequena multidão acima de mim. Só quando ele segurou meu rosto com as duas mãos e me sacodiu com a delicadeza do seu desespero é que pude ficar em paz. Não queria morrer, mas se assim tivesse que ser que minha última visão fosse o rosto do meu pai. Não podia morrer, não antes de comer todo o chocolate que tinha acabado de comprar. Quem os comeria? Ninguém suportaria a lembrança amarga. E meus filhos, quem os teria? O meu lugar no mundo ficaria vago. Não se pode substituir pessoas. Meus planos eram outros, viver até os setenta talvez não fosse o suficiente pra fazer tudo o que eu tinha pra fazer. Conhecer todas as pessoas que eu precisava. Amar todos que fosse possível. Odiar todos que merecessem. Ir aos lugares que valessem a pena. Uma vida é pouco pro tamanho do mundo. Não tive tempo de dançar todas as valsas, nem de provar os gostos. Minha gaveta cheia de idéias... Eu percebi naquele segundo que aquelas idéias não eram tão inovadoras quanto eu imaginava. Não eram grandes idéias. Mas eram as que eu tinha, as minhas idéias, quem as colocaria em prática? Alguém, depois de muito chorar talvez perdesse um pouco de tempo da própria vida lendo meus rabiscos. Não entenderiam, me achariam infantil e descobririam minhas fraquezas, que eu escondia com tanto cuidado. Vão conhecer o que só eu tenho o direito de saber. Não é fácil respeitar quem não pode mais reinvindicar a própria individualidade. Vão invadir minha mente e eu nem vou estar aqui pra pensar a respeito. Não ligo pra matéria, exceto o que eu mais amava. Minhas coleções. Meus livros, ninguém vai lê-los com a mesma paixão que eu. Meus filmes. Quem vai devorar as cenas com os meus olhos? Minha caixa. Meus objetos. Ninguém vai dar o mesmo valor. Por que uma lata de cola-cola? Um papel roxo em branco. Uma pena vermelha. Uma toca de natação rasgada. Um panfleto de teatro. Um relógio quebrado. Uma conversa em um papel amassado. Eu não vou estar lá para explicar cada inesquecível significado. Não vou poder defender minha mania de guardar pequenas grandes coisas. Talvez joguem fora. Minhas lembranças no lixo. O que eu mais amo, no meio do que os outros julgam inútil. Se eu tivesse um testamento, nele eu teria escrito: Cuidem das minhas partes, minha mente vale mais que meu corpo.

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Agradecimentos especiais Fábio..." Da essência partida ao meio formaram-se dois, amigos" :D