Uma vez na vida



Momentos assim são raros. Ali na minha frente estavam elas, as pessoas mais importantes da vida que vivi. As que eu mais amei e pelas quais mais fui amada. Não estavam envoltas em gargalhadas como de costume. Alguns sussurros aqui, outros acolá, mas nada comparado aos discursos inflamados nas rodas de amigos. Os casos contados e recontados que não cansamos de relembrar. O clímax, o segundo de silêncio entre o fim da narração e a explosão de comentários e risos simultâneos. Risos prolongados ao máximo pelo contentamento da companhia. E encadeados, um sorriso puxa outro, contamina um por um de quem estiver por perto. Sensação deliciosa de uma boa epidemia. Que bom seria se não existissem curas pra felicidade.

Pessoas iam e vinham. Uns amigos, outros nem tanto. Um ou outro não encontrado na memória. Mas os que a mente selecionara, gravados na essência dos dias, esses estavam todos ali ao lado. A maioria deles abraçados entre si, uns mais apoiados que abraçados. Não eram muitos, mas o suficiente pra comprovar que vida tinha valido a pena.

O choro de minha mãe era constante, e cansado. Não tinha o mesmo vigor do início, não que lhe faltassem motivos para o lamento, faltavam-lhe forças. Enquanto isso as mãos do meu pai se estendiam sobre as minhas em um silêncio gritante. Queria eu enxugar suas lágrimas e retribui seu afeto. Queria ainda mais substituir aqueles soluços pelo riso. Aquele carinho tímido pelo abraço ilimitado. Mas o que podia eu fazer?

Depois de muitos cumprimentos discretos as pessoas deram as mãos e organizaram-se em um círculo mal feito ao meu redor. E assim puseram-se a recitar a mais verdadeira das poesias. Pai nosso que estais no céu. Nunca fui a mais religiosa das criaturas. Santificado seja o vosso nome. Muitos dos presentes ali também não. Vem a nós o nosso reino. Mas em momentos raros como este. Seja feita a vossa vontade. Algum tipo de fé dormente desperta no peito. Assim na terra como no céu. E é possível sentir nas mãos entrelaçadas. O pão nosso de cada dia nos daí hoje. Um pulso mais forte e mais seguro do que o habitual. Perdoai-nos as nossas ofensas. É a oração feita junto à cama com as pequenas mãos espalmadas. Assim como nos perdoamos a quem nos tem ofendido. A certeza permitida pela pureza de ser criança. Não nos deixei cair em tentação. Quando ainda não sabíamos solidificar tudo, até nossas almas. Mas nos livrai-nos do mal. Morrer não dói, mas deixa saudade.

Amém. Amém.

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Quanto tempo =)

Eu sempre tento me responder o porquê dos meus textos e nunca consigo. Eles surgem assim do além. Do subconsciente talvez. Um dia eu ainda descubro como e pq.

Beijão!


Ele só sabia que chovia. Como chegaram ali, como obtivera a imensa coragem de segurar a mão dela, como começara a falar heroicamente, quase sem gaguejar, como se tivesse ensaiado - isso ele não sabia. Mentira; lembrava de quase tudo, mas o importante mesmo era que chovia. Havia um silêncio de bomba - bomba não-lançada - entre cada frase. Ele falava, cada palavra um passo a mais em lago coberto de gelo fino, vendo o precipício no final de cada caminho (tão articulado o achavam e quando ele precisava falar, diacho, as palavras saíam cuspidas, sem sentido). E depois das palavras, mais silêncio, e ele ficava olhando pros olhos dela (quando ela lhe permitia vê-los) e espreitando a bomba naquele céu castanho - caía ou não caía? Aí ela falou - rápida, nervosa, quase desconexa. Mas nem tanto, as palavras dela talvez teriam feito sentido se ele a deixasse terminar. Mas ele a beijou e só soube dos lábios dela contra os seus e tudo fez sentido - as palavras dela, as palavras dele, o lugar, a chuva, o silêncio. E depois do beijo, foi outro silêncio de bomba. De bomba lançada, certeira, de bomba que acerta o alvo. E depois ele só sabia dos seus sorrisos.

Saber agora, ele não sabe de muita coisa. Não sabe quanto vai durar, não sabe quantas chuvas e quantos pôr-de-sóis. Mas ele sabe sim, que cada uma e cada um valeu a pena. Ele ainda não sabe o que é, mas é bom. Ele não sabe o que detonou aquela bomba. Ele só sabe que desde aquele dia ele, que só sabia ser feliz em parte, prova todos os dias as delícias de ser feliz por inteiro.

E eu só posso dizer que espero que essa história ainda demore muito pra acabar.

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Tu sabes que é pra ti, bonita.

Lembrem-se das borboletas


"O amor de um cura o ódio de milhões"
(Gandhi)

Dos poucos luxos aos quais se dava na vida, um era aquele belo canteiro de flores. Mas não era um luxo que guardava pra si; tão logo as flores estavam no seu período mais bonito, ele as colhia, colocava-as num cesto e ia para o centro da cidade. E lá as distribuía para quem passasse. Sim, distribuía; muitos achavam que ele estava vendendo, outros tantos que ele estava ligado a alguma seita, mas a maioria pensava que ele era um maluco mesmo. E com razão.

A dona de casa passava com sua sacola de compras e o homem do escritório carregava uma pasta preta, mas ambos se incomodaram com a vadiagem do senhor. E mesmo ocupados como eram, resolveram ir até o homem e interpelá-lo:

- Escuta, moço, o senhor não tem mais o que fazer? - essa peróla de sutileza foi cuspida pela dona de casa.

O velho, doido, distribuidor de flores (e que também tinha algo de poeta, desconfio eu) também adorava conversar. Riu-se da pergunta da mulher e respondeu:

- Tenho, mas o que faço aqui é muito mais importante.

- Entregar flores às pessoas? De graça? - inquiriu a mulher, incrédula.

- Sim. Consegues pensar em algo mais importante?

O homem de negócios riu:

- Nesse momento me ocorrem pelo menos umas duzentas coisas de uma vez...

- Entendo... é uma pena... - disse o velho e parecia realmente apiedado.

E ele não parou de entregar as flores enquanto falava. Eram flores grandes, vistosas, bonitas. A dona de casa irritava-se cada vez mais:

- Mas por que diabos o senhor faz isso?

- Simples. Cada vez que entrego uma flor e alguém sorri, ganho uma batalha contra o ódio e a tristeza.

Os dois ficaram estupefatos. O homem continuou:

- Entendo o espanto. Também acho que o ódio e a tristeza devem existir no mundo. Mas penso que eles existem para podermos combatê-los e derrotá-los a cada dia.

Ele claramente interpretara erradamente os rostos dos dois. Mexendo incomodado na sua gravata, o homem de negócios falou:

- Não vês que estás empenhado em uma batalha vã?

- Sim! - concordou a dona de casa - De que adianta esse sorriso agora no rosto das pessoas se mais tarde essa flor vai murchar e eles voltarão a ser tristes - talvez antes disso, até. Talvez até joguem a flor fora, uma vez que estejam fora das suas vistas. De toda maneira, esse sorriso não ficará lá para sempre!

- Diga-me, minha filha, acaso não lembras das borboletas?

- Como?

- As borboletas... passam tanto tempo rastejando como lagartas e depois se fecham num casulo do qual lutam ferozmente para sair. Muitas morrem no caminho. Depois que viram borboletas, não duram mais que alguns dias. Porém eu não conheço muitas existências tão belas assim neste mundo.

A mulher arregalou os olhos, mas logo dissimulou a admiração. Fez cara de pouco caso e de caso perdido, agarrou a sacola e foi embora. O homem de negócios sorria. A afirmação daquele velho senil era bonita, mas e daí? Beleza e só, quem ligava pra isso?

- Achas mesmo que conseguirás vencer nessa revolução de flores, meu bom homem?

- Quem sabe, meu filho? Essas flores, eu só as distribuo.

- E acreditas que pode comover alguém? Que alguém continuará essa sua luta depois que o senhor se for? O que acontecerá quando o senhor partir deste mundo?

- Quando eu morrer, meu filho, meu corpo há de ser adubo para que nasçam ainda mais flores por aqui.

O homem sorriu. Disse ao velho que precisava ir e este entregou-lhe uma flor. Enquanto se afastava, o homem de negócios prendeu a grande, vistosa e bonita flor na sua pasta. O velho sorriu ao observá-lo de longe. Conseguira mais um soldado.

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A todos que acreditam na utopia e no poder das flores sobre as armas e a todos aqueles que me ensinaram e continuam ensinando a acreditar nisso também. Muito obrigado a todos por existirem.


Foto: Pietro Cenini, extraída do calendário da ECOOS.