Passaram-se segundos até que ela percebera que eu a encarava e desviara os olhos encabulados. Já havia me acostumado com tais olhares, pelo menos teoricamente. Dizem que nós humanos nos acostumamos com tudo, mas eu particularmente desconfio que esse tudo seja tão abrangente assim. Eu nunca me acostumei com a pena, nem com as perguntas. Sempre achei a curiosidade humana magnífica, mas nunca havia reparado como ela é intensa. Todos que olham querem mais que apenas olhar, depois de segundos hipnotizados sempre tentam disfarçar, mas nunca conseguem. Parece uma necessidade incontrolável de saber o porquê e o como das desgraças alheias, como se isso fosse fazer alguma diferença na vida deles ou na do desgraçado.
Com ela não foi diferente, depois de abaixar os olhos chamou discretamente a senhora ao seu lado, provavelmente sua mãe, e foram para fora do quarto. Da minha cama profetizava a conversa: “O que aconteceu com ele? Oh minha filha foi um acidente de carro. Coitado...” Doía na alma cada vez que ouvia essa palavra em meio aos sussurros... Coitado. Como se atrevem a condenar-me como infeliz? Alguém já me perguntou se sou digno de pena? A pena que tantos dizem sentir não trará minhas pernas de volta, nem meus braços, meu tato, nem meus sonhos, meus amores, os odores opostos ao do detergente intragável que insistiam em passar todos os dias naquele chão o qual eu não podia sequer sentir.
Ao voltar do corredor colocou-se de costas para minha cama, como forma de obrigar-se a não olhar. Consegui ver o movimento das suas mãos acariciando a cabeleira branca do velho que ela acompanhava. Era perceptível o carinho que ela possuía por ele. Aquele senhor já estava mais para lá do que para cá. No dia anterior, sem que percebesse minha presença, pude flagrá-la junto com todos os outros pacientes do quarto aos soluços do lado do homem desacordado. Hoje com os olhos abertos ele gritava pelas pupilas a felicidade em vê-la. Naquele pequeno e choroso ser, havia algo peculiar, eu só não pude identificar o que era.
Minutos depois de muito cafuné, beijou a testa enrugada com uma delicadeza rara e saiu novamente dizendo que voltaria no dia seguinte. O velho logo se entristeceu e por mais que odiasse seu comportamento ordinário, sua pena por conta de minhas limitações sentia o mesmo e ansiava pela sua volta. Não era bonita, nem sedutora, fascinante ou algo do tipo. Não me despertava o instinto masculino que tanto me causava sofrimento, aguçava em mim uma espécie de calmaria. Não me perguntem o porquê. Mas aqueles olhos lacrimejantes que me lançaram um último suspiro antes de desaparecer no corredor permitiram que eu me deixasse levar pelo sono, e então pude descansar em paz. Sem mais perguntas.
Sinceramente não gostei desse final, mas não saiu nada melhor e ficar mil horas pensando acaba quebrando o processo, então preferi deixar assim. Um dia surge uma idéia e ai eu modifico.