Vinha repetindo isso há dias e, naquele dia em particular, há horas. Havia uma agonia profunda em cada ruga daquele rosto envelhecido. Os longos cabelos brancos, outrora penteados com esmero, agora se espalhavam, desgrenhados, pelo travesseiro. A filha única sofria impotente com a dor da mãe (por que aquilo não acabava de uma vez?). O único genro se compadecia da esposa e olhava com tristeza a mulher que o acolhera tão gentilmente se desmanchar em devaneios febris. A neta mais velha saíra da escola correndo para chamar o médico, mas nada podia ser feito e ela sentia o gosto salgado das lágrimas retidas, que segurava por causa dos pais. Os três então rezavam. Porque sabiam que era a única coisa a fazer. Não para salva-la, mas para trazer conforto (resta saber a quem).
- Alguém me diga o gosto das jabuticabas...
Só um membro da família tinha as mãos livres. Ao neto mais novo tinha sido ordenado que fosse para o quarto e dormisse. Mas nem era noite ainda! O menino então parara à porta do quarto da avó e olhava estarrecido a cena que se passava ali. E o que significa aquela cena? Por que seus pais e sua irmã estavam de mãos dadas enquanto sua avó gemia? O gesto o fez recordar outra cena, de quase um mês antes, e das mãos dos seus pais também atadas, enquanto a mãe dizia algo entre lágrimas.
- Alguém me diga o gosto das jabuticabas.
A verdade lhe atingiu como um tiro seco. Vovó estava morrendo.
E onde estava a tristeza de todos, porque ele não sentia? No alto de seus seis anos, o garoto não conseguia se recordar de outra avó que não fosse aquela, senil. Avó, aliás, que sequer sabia da existência do neto. Neto que, ainda assim, era obrigado a abraçar, beijar e até amar alguém que não lhe conhecia.
A velha parecia na verdade estar alheia a tudo. Como era nojento vê-la comer! A mãe que antes dava a comida para ele na boca, agora tentava enfiar algo pela garganta da avó, que babava e regurgitava boa parte de tudo o que havia no prato (ele era muito mais educado). Tudo era tão cômodo para aquela mulher que ele chegava a se perguntar se tudo não passava de encenação; afinal, mesmo naquele mundo etéreo onde ela parecia viver, ainda se incomodava com o menor barulho que ele pudesse fazer, obrigando o garoto a passar tardes inteiras sem brincar, porque não raro a mãe também o proibia de sair porque “precisava ajudar a tomar conta da vovó”.
- Alguém me diga o gosto das jabuticabas...
Visivelmente a contragosto, ele ia. Em uma dessas tardes, havia lágrimas de raiva brilhando nos olhos dele. Não era uma tarde qualquer; todos os seus amigos iam para a casa de Joaquim, que comprara um videogame novo. Pois a mãe não cedeu mesmo a esse argumento.
- Sinto muito filho, mas precisamos cuidar da sua avó. Sua irmã e seu pai não estão.
- Mãe, por favor, eu cuido dela qualquer dia, mas hoje não!
- As coisas não são assim! Ela precisa de cuidados hoje e você vai me ajudar. E ponto final!
A velha estava sentada em uma cadeira de palha ao lado da janela olhando sonhadoramente para o horizonte. Muito rápido, antes que ele pudesse refrear, ele desejou que ela morresse. Se ela estava quase, porque não ia de uma vez? Só servia para fazer mamãe chorar e brigar com ele. E babar e jogar comida fora e gemer. Nem chorar sabia mais. E ele, que odiava dar aos outros o gosto de lhe verem chorando, derramava lágrimas em frente a avó.
Talvez fosse vergonha por tudo o que pensara, ou só raiva mesmo. Mas ele chorava. E soluçava. O barulho a fez virar a cabeça lentamente, o sol dourando os cabelos prateados. Ela então lhe sorriu um sorriso fantasma, e ele descobriu que ela tinha o sorriso mais doce e os olhos mais ternos que ele conhecia. O menino então correu e chorou copiosamente no colo da avó, que ainda tinha o olhar perdido em frente. Mas pousara a mão trêmula e frágil sobre a cabeça do neto caçula. E agora ela sofria. E outra verdade o atingiu.
- Alguém me diga o gosto das jabuticabas...
Pé ante pé, ele foi até a porta da sala e abriu-a devagar (nunca antes aquela porta abrira sem ranger). Tão logo se viu fora da casa, correu. Aquilo que procurava estava fora da propriedade do sítio, mas ele sabia exatamente onde estava. Por isso correu, para além da porteira, levantando nuvens de terra, o céu virando sangue e a respiração sólida, como sólido era o pensamento em sua avó.
Tão sólido esse pensamento que se assustou ao perceber que as pernas o tinham levado aonde queria mais cedo do que pensara. A pressa se esvaiu. Subiu na árvore com calma (sorte acha-la tão carregada), puxou uma fruta do tronco e pôs na boca. Mordeu, cuspiu fora o caroço e deixou o sumo invadir a língua, pensativo. Subitamente, entendeu. Sorriu e apanhou mais algumas.
- Alguém me diga o gosto das jabuticabas...
A voz implorante se convertera num sussurro rouco. Não iria tardar agora. E por isso os pais e a irmã olhavam assombrados o menino que entrava no quarto. Parecia constrangido, mas determinado. Estava sujo e suado, a boca e as bochechas meladas. O pai tentou levá-lo para fora, mas ele se desvencilhou. Ajoelhou-se ao pé da cama e chamou suavemente:
- Vovó...
Assombrando ainda mais a todos, a velhinha virou o rosto cheio de dor na direção do neto. Ele aproximou os lábios do ouvido dela e disse algo para ela, e somente para ela. Um sorriso emergiu nas feições da avó (o sorriso mais doce e os olhos mais ternos que ele já vira) e ela assentiu. Depois virou a cabeça para o lado, suspirou profundamente e fechou os olhos para sempre. Enfim, em paz.
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Acho que vai ser mais difícil pros leitores se identificarem com esse porque eu fiz baseado em coisas bem pessoais. Além disso, tá muito comprido X.X. Mas enfim, ei-lo aí =]
PS: Agradecimentos a Thaís que foi a primeira que leu (porque eu fiz na hora da aula, hehe) e disse que gostou XD Se vocês não gostarem, reclamem com ela.
Falou o/